quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Porque sou Medeiros

Capa



Aos 94 anos, Teresa de Jesus Medeiros mais uma vez demonstra sua obstinação ao lançar este livro, resultado de exaustiva pesquisa empreendida através de documentos e entrevistas, muitas delas obtidas por meio de cartas escritas a mão pedindo informações a quem descobrisse chamar-se Medeiros. Está façanha talvez cause admiração a quem não a conhece, mas os que com ela convivem vêem apenas mais uma realização daquela que foi a primeira fotógrafa profissional do interior da Paraíba, ofício iniciado, por coincidência, quando as mulheres conquistaram o direito ao voto.

Este livro é mais uma contribuição sua à história e à cultura paraibana, "feito com muito amor e dedicação, de serviço para aqueles e aquelas que aqui ou em outra parte, têm Medeiros no nome, mas não tem a menor ideia de sua origens".


Teresa de Jesus Medeiros


Impresso pela Editora Universitária/UFPB em 2006.

sábado, 21 de agosto de 2010

Que achei no monturo

Coversa no monturo

Tudo começou
no sítio que vovô tinha,
onde eu fazia as brincadeiras
quando era criancinha,
digo em rima e verso
tudo que no monturo tinha.

Um ninho de galinha,
as penas de um pavão,
uma urupemba sem aro,
um taxo e um caldeirão,
um cromo do ano passado,
e um emblema da seleção.

Tinha também lá no chão
um arremedo de mocò,
tranças de alho e cebola
tudo junto dado um nó,
tinha até um tamborete
quebrado com uma perna só.

Um retrato de Itó,
daquela outra eleição,
pavio de candeeiro,
uma ponteira de peão,
cacos de vidros coloridos,
espalhados pelo chão.

Existia um caixão
sem tranca nem fundo,
um frasco de biotônico
que dar força a todo mundo,
uma nota de 10 cruzeiros
com a cara de D. Pedro II.

Um paletó todo imundo,
também achei por lá,
gola suja de camisa,
retalhos de abada,
uma chapa sem os dentes,
corda velha e alguidá.
Jumento com caçuá


Tarisca de caçuá
as relíquias de uma novena,
uma peteca rasgada
sem o fundo nem as penas,
capa de uma Playboy
com uma linda morena.

Retrato de Airton Sena,
cangalha e arcão de sela,
couro cru só os tampos,
e alguns pedaços de tela,
casca de bala e anzol,
embira, correia e fivela.

Uma Philips... só a tela,
e um A.B.C. canarinho,
o vêio e o fuso,
de um velho moinho,
muitas tampas de garrafa,
e uns ossos bem branquinhos.
Encontrei garrafão de vinho,
uma caixa de colgate,
vidros de para brisa,
e papel de chocolate,
tampa de nescafé
e de extrato de tomate.

Tinha roi-roi e bate-bate,
alça de calcinha e sutian,
um tubo azulzinho
desses de pólvora tupã,
um pedal e um currupio,
muita cinza e pucunã.
Havia casca de romã,
pedaços de um LP,
troço velho e catrevagem
duas capas de CD,
uma tabuada rasgada
e uma carta do ABC.

Só vendo mesmo pra crer
o que um monturo tem,
aba de chapéu de couro,
prata velha de vintém,
um vidro de pitisqueiro
e peneira de xerém.Carteiras de cigarro.
Era desse jeito que nós crianças
brincavamos, para imitar dinheiro.



Carteira de cigarro também,
plaza, minister e continental,
um carretel sem linha,
tesoura enferrujada e um dedal,
ponta de prego e parafuso
espetado em um pau.

Neste mesmo local,
motor-rádio que não fala,
todo feito em baquelite,
e uma asseia de mala,
disco de cera de carnaúba
um cabo de bengala.

Chocalho que não badala,
cheia de ferrugem uma peixeira,
um rolamento velho e gripado,
pedaços velhos de esteira,
muitos palitos de fósforo,
e quatro acentos de cadeira.

Tábuas de prateleira,
e um silo havia ali
todo furado e seco,
escrito vermelho eu li
Estado da Paraíba
Governo Burity.

Não pude resisti
na hora fiquei contente,
quando intrupiquei
mais que de repente
pregado numa faixa azul,
uma velha cama-patente.

De um gato vi os dentes,
do cachorro a ossada,
caixa de fósforo Argos,
japonesa com a tira rasgada,
um par de sete-léguas
sem o cano e furada.

Um caco de enxada
e um machado corneta
emblema do Botafogo
pregado na cardeneta,
alguns cotoco de lápis
e pedaços da caneta.

Uma sandália xereta,
um quicé sem o surrão,
tiras de chita coloridas
de cambraia e mandapulão
lata de sardinha coqueiro
muitas tiras de cordão.

A história não acaba não
tem muita coisa pra dizer
acredite meus amigos,
no que digo a você
quem não acreditar
vá ou monturo ver.


Nota do autor:

Aqui dou por encerrado mais este relincho que cometo, ao retratar a infância de moleque pobre; digo, menino que gostava de bulinagem. Tal, como um passeio no monturo, tive literalmente de reviver e escrever; e lá estava ele com toda riqueza de material para ser transformada ou mais ecologicamente correto, ser reciclado. Reciclei-os em forma de trova e está aí o que fiz.

Tem as arestas do vernáculo que ainda estão por apará-las, não sei quando pois o português é bem cheio de coisas e normas, para a poesia são coisas d'alma (fica mais camoniano).

Havia mais outras tralharias velhas mas ficaria muito extensa e cansativa, embora hilaria como lata de pastilhas valdas, elixir sanativo, leite de magnésia, etc. Mas medicamentos velhos será outra estória.

Janduir Medeiros

Fotos: Acervo particular de Mário Ferreira
Montagens: Francisco Roberto


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Chiqueiro da Onça

Chiqueiro da Onça


Ainda hoje está lá no meio da encosta da Serra da Tubiba, bem no sítio dos herdeiros de Lia e João Araújo, num lajedo grande, a armadilha, conhecida como chiqueiro da onça.

Alçapão, construção rústica, feita com pedras arrumadas, gradil de madeira tosca ainda muito bem conservada, construída pelo hábil caçador Sebastião Abel Dantas, onde segundo se propalava, lá ele pegou muitas onças, aquela chamada onça de bode - a suçuarana - um bonito e perigoso animal, muito feroz.

Essa armadilha, é constituída de dois compartimentos, um maior, aproximadamente 4 X 1 metros, onde a onça era aprisionada, na entrada, naturalmente tinha um sistema de armadilha que baixava a porta, logo que a fera penetrava.

Aos fundos, um compartimento menor, possivelmente uns 1 X 1 metro, com uma grade de madeira que o separava do maior e onde ficava a "isca", sempre um cordeiro ou cabrito e que diga-se de passagem sofria um medo terrível. A onça era atraída pelo cheiro da isca e se lascava.

Como já disse anteriormente, supõe-se que o construtor dessa obra tenha sido Sebastião de Abel Dantas, caçador nato de onça.


Chiqueiro da Onça

Sebastião faleceu no ano de 1926, com apenas 45 anos de idade. Possivelmente esse monumento ainda hoje digno de ser visto e preservado, ele o tenha construído na primeira década do século passado (século XX).

Uma historinha que me foi relatada pelo meu velho amigo Sebastião Campina, Carpina de profissão e caçador por convicção, qualquer folga que lhe aparecia, botava a espingarda nas costas e se fazia no mato em busca de caça.

Ele contou-me que na época era vigário da freguesia de Santa Luzia, o reverendo padre Joaquim Alves Machado e que ele criava um cachorro bem bonito, grande e de muita estimação. Certa vez, o padre tendo sido sabedor das aventuras de Sebastião Abel, mandou pedir ao mesmo que quando pegasse uma onça, mandasse avisá-lo que ele queria conhecer a fera. E assim, se fez.

Certa Madrugada seguiu o padre numa comitiva de uns cinco cavaleiros e um portador - portador é aquele serviçal que quase sempre acompanha a comitiva de pé - isto nos tempos de antanho - ele levava pela corda o cachorro. Chegaram ao local no pé da serra, o sol acabava de nascer, apearam, amarraram os animais e pela vereda feita pelo caçador, subiram até o local do alçapão.

Todos olham e admiram o belo exemplar de onça, que já muito está nervosa pelo tempo que está aprisionada. Aí o padre diz: vou botar Tubarão na frente da fera, quero ver a coragem dele. Tubarão, era o nome do cachorro, tinha no pescoço uma coleira larga onde era presa uma corda de cabelo trançado em preto e branco, uma beleza de corda.

O caboclo praticamente arrastou o cachorro pra frente da onça e quando a fera avistou o cão, deu um grande esturro e partiu na direção do mesmo e só esbarrou quando bateu com a cabeça no gradil da porta.


Chiqueiro da Onça - vista pela parte de traz

Tubarão com o medo, dá uma arrancada para traz, toma a corda da mão do cabloco e foi a ultima vez que foi visto. O padre ofereceu todo tipo de recompensa - dizem que até o céu foi garantido - para quem encontrasse seu Tubarão.

Passado um tempo, Sebastião Campina caçando lá pelo Tapuyo, pras bandas do riacho que tem o mesmo nome, nas vizinhanças da armadilha, encontrou um resto de corda semelhante aquela que prendia o animal - por sinal que fez-lhe um grande susto pela semelhança nas cores , a uma cascavel - e logo na frente enganchada numa forquilha de mofunbo, a coleira toda enquerquilhada e mais nenhuma pista de Tubarão.

Um pouco na frente, aproximadamente uns 500 metros do local onde esta situado o "chiqueiro, existe uma furna na aba da serra e que os antigos denominavam de "furna da onça". É possível que tenha sido uma morada de onça. O local é difícil acesso, não é grande mas chega a ter a altura de um homem normal.
Fotos: Rosalba Nobre Ferreira

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Jeová Batista e o Museu de Santa Luzia

O Museu de Santa Luzia abriga importantes peças históricas, é formado por um riquíssimo acervo cultural. Foi criado oficialmente no dia 24 de novembro de 1971 pela Prefeitura Municipal, com o objetivo da preservação das obras de artes do município e resgatar o Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Ecológico da cidade.

Jeová Batista de Azevedo foi um dos fundadores do museu de Santa Luzia, que com muito zelo e estima conseguiu formar um acervo estimado em mais oito mil peças encontradas na região do Seridó e demais circunvizinhas.

Em 1974, a coordenação estadual do MOBRAL/PB inaugurou seu posto em Santa Luzia e, entre os programas implantados, o que mais sensibilizou a comunidade, sem dúvida, foi aquele voltado para o patrimônio histórico e artístico.

Decorrente da importância do museu na vida do município surgiu à idéia do professor Renault Vieira de Souza de criar a Fundação Museu Comunitário de Santa Luzia, sociedade civil sem fins lucrativos, como instituição mantedora do museu e da biblioteca, constituída em 1984, voltada principalmente para a arte e a cultura. Pesquisa e história regional, tendo Jeová como Diretor Cultural.

No seu acervo consta uma pedra com a pegada de dinossauro proveniente do Vale dos dinossauros localizado no município de Souza. Há também machados de pedras (possivelmente da era da pedra polida), também conhecidos como pedras de corisco ou machado indígena, louçaria européia e armas de jagunços.


Outras peças importantes destacam-se no acervo os vários instrumentos musicais como um bonito violino da marca "Gianini", com selo "Stradivarius". Foi fabricado em madeira nacional, o Salgueiro, e seu arco também é de matéria brasileira, a Peroba. Esse violino pertenceu ao fazendeiro Manoel Abel.

Outro instrumento de grande valor é um alaúde, de mais de 100 anos, de origem napolitana, doado ao museu por Dona Luzia Araújo. Esse instrumento foi de grande sucesso em fins da Idade Média. No alaúde lê-se a inscrição: "Arilletti Umberto - Nápoles.

Um clarinete, também com mais de 100 anos, que pertenceu a Nestor Tavares Nóbrega, fabricado em Ébano, de marca francesa. Uma flauta, que pertenceu a Iracema Araújo, fabricada em Paris, também com mais de um século. Flauta Transversal, de Joaquim Machado da Nóbrega, "Seu Joca", fabricado em Craviuna, pelo seu proprietário.

Um bombardino, aparentando ser muito antigo, estranhamente muito austero, de um dourado puxado ao vermelho com uma amassadura em sua campana. Segundo Jeová, esse instrumento pertenceu ao maestro Ezequiel Fernandes, uma figura lendária e muito querida na cidade. Quando Antônio Silvino invadiu Santa Luzia, foi a sede da filarmônica e ordenou a depredação dos instrumentos. O instrumento foi amassado em violentos golpes contra o solo, mas posteriormente passou por um trabalho de recuperação, embora permaneçam as marcas da violência.

Muitos outros objetos são encontrados no museu. Como um elegante tinteiro , de um refinado vidro esverdeado, com arabescos em baixo relevo folheados a ouro. Foi doado por Brasília Medeiros. Contava Dona Dalila, sua mãe, que o tinteiro foi trazido por seus avós quando chegaram da Europa para Olinda há muito tempo atrás. Tinham eles um pequeno animal de estimação, um inteligente macaco que certo dia desapareceu da Casa Grande. Tempos depois o macaco reapareceu. Trazia consigo, guardado com muito ciúme, o belo tinteiro verde, com filetes dourados.

O visitante do Museu de Santa Luzia tem para apreciação um acervo diversificado e bem organizado estruturalmente dividido em coleções. A de "Arte Sacra", tais como pia batismal, imagens, sinos e objetos litúrgicos. À coleção "Armaria", formada por armas brancas, espingardas, garruchas, "Munições", com peças utilizadas na Revolução de 1930. "Numismática", formada por moedas de diversos períodos: colonial, do Império (Primeiro e Segundo Reinado), da República - a moeda mais antiga data de 1715.

A coleção "Material Lítico", composta por minérios extraídos na região por garimpeiros e pesquisadores: berilo, turmalinas, mica, perita, amianto, colombita, quartzo, etc. "Arte Indígena", arcos, flechas, lanças, etc. "Máquinas de Costura", diversas épocas. "Instrumentos Musicais": formada por instrumentos antigos que pertenceram aos membros da Banda Musical 23 de Maio, de Santa Luzia, fundada em 1874.

"Apetrechos": objetos de indumentárias, bolsas, sapatos, carteiras, cintos, fivelas, etc. "Cerâmica": material proveniente de demolições de casas antigas da cidade e, também, de cerâmica, utilitária e de adorno produzidas na região. A coleção "Mobiliário", com peças de períodos diversos que remontam à criação do Município. "Documentos": certidões, textos referentes a história do Município. "Iconografia": fotos, retratos de figuras, prédios, fatos da cidade e do Estado. "Diversos": constituída por variadas peças como discos, ferramentas, lamparinas, etc.

Tudo bem explicado, assim, deixa a impressão de que Santa Luzia conta com um Museu ao estilo das cidades barrocas mineiras, assistidas pela Funarte e outras fundações que cuidam da memória nacional. Na verdade, a singela cidade sertaneja, cercada de água por todos lados, conta apenas com a forma real-mágica de encarar a vida, do marcante personagem Jeová Batista, o seu Museu Municipal.

O Museu é dividido em 16 sessões, o que faz com que os assuntos se misturem, já que conta apenas com oito salas. O prédio pertencia ao antigo Posto de Saúde, e não passou por nenhuma adaptação para o funcionamento de um museu. Não há a mínima condição de segurança, não só contra roubos, também contra agentes naturais.

E pelas palavras do museólogo Jeová Batista: "Talvez o nosso acervo, tudo junto, não valha, em moeda corrente, o preço de um milhão. Mas aqui está viva, toda a História de uma cidade, que não é tão antiga quanto Roma, mas que já não é tão nova, como Brasília, por exemplo. E é para isso que estamos trabalhando para preservar a memória do homem da terra".

O Museu hoje se chama Museu Jeová Batista, em homenagem, àquele que muitos anos cuidou das peças e do acervo do museu por muitos anos.


Fonte:

Jornal A UNIÃO (João Pessoa, 27 de maio de 1984).

Reportagem: Armando Marinho.

Fotos: Ernani de Souza (Jeová) e Francisco Roberto (machado de pedra).

Redação Final: Francisco Roberto

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

JUDAS NO TAPUYO

Eu vim pra festa do Judas
Saí cedo cheguei primeiro
Cheguei acordando o povo
Acordei até o vaqueiro
Queria comer o churrasco
Do invisível carneiro

Acordei Zé Arthur
Judith e o velho Marão
Dei carona a Zé Ferreira
Em busca do Carmitão
Aqui encontrei Zé Mário
Que ajeitava o rifário
Pra botar o Judas no chão

Tinha revólver e espingarda
Tinha pistola e cravina
Pois se sou atirador
Vim comprir minha sina
Atiro no nó da corda
Que o Judas velho entorta
E dispara lá de cima

E quando o Judas caiu
Foi aquela animação
Mário o dona da casa
Butou o Judas no chão
E alegre como um vem-vem
Recebeu os parabéns


Por Paulo Romero Ferreira

Almanaque do Quipauá 2008



terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Testamento de Judas

Meus estimados netos, bisnetos, tetranetos, e mais descendentes e afins. Eu, Judas Florêncio das Grandes Tormentas, condenado que estou pela minha covarde atitude, de vender Cristo, culpa agravada pelo mísero valor da transação - 30 dinheiros - em pleno gozo das minhas faculdades, antes de subir ao patíbulo, quero testamentar meus haveres - que são muitos - para o agrado dos meus beneficiados.
E, para evitar querelas entre os apaniguados, deixo como tudo como abaixo se relaciona:

Aos meus compadres amigos Mário e Alziva deixo estas terras ao nosso redor, terras que são férteis e, que sendo bem executadas, produzirão. E que dona Alziva tolere o marido por mais algum tempo.

Para Zé Mário, moço valoroso e trabalhador, deixo minha máquina de foliar formiga e a borracha d'água. Quero que, com a máquina, que é de tecnologia de última geração, possa combater a saúva no sítio. A borracha é também de fabricação ultra-moderna, gela e filtra em segundos.

Para Reynaldo, moço de muita capacidade e inteligência, a minha caneta de estimação. Com ela você poderá fazer seus escritos, os de maior valia.

A Marco Antônio, pessoa boa, vivo e esperto, deixo o meu chicote e o facão, peças raras de meu uso com os quais nunca perdi uma peleja.

Para a doutora Socorro, moça de muitas prendas, a fim de que possa aprimorar e embelezar seu consultório, deixo o meu porta canetas, obra de arte, já exposta nos grandes salões.

Para Lucinha, moça historiadora e muito prendada, deixo o meu Lunário Perpétuo para que ela, além de conhecedora do passado, possa, com ele, prognosticar também os tempos futuros.

Para Rosalba, moça valorosa, amada do marido, ciosa dos filhos, com muito apreço deixo o meu anel, jóia de grande valia com a qual sempre compareci aos grandes furdunços.

Ao Dr. Aderaldo, geólogo de muita fama e capacidade, deixo minha batéia. Com ela sempre peguei algum ouro. Deixo também essa barra-mina para que possa cavocar nas minas de mais encantos.

Para o Major Paulo, cavalariano de muita punjança e valor, deixo o meu loro com estribo, peça que sempre usei nas minhas grandes aventuras equestre. Deixo também esse chocalho do meu boi barbatão, para que o tenha sempre na garupa da sela.

Para Wandick, moço estimado e de boa índole, o meu tabaqueiro nada melhor para levantar o ânimo que umas nargadas de torrado.

Para Judith, minha prima de coração, deixo o meu cachimbo de estimação para que ela possa pitar nos momentos de cismas.

Ao Dr. Expedito da Dona Carmita, moço forte e valente que está sempre apressado, deixo a minha ampulheta, tecnologia de primeiro mundo, para que ele possa regular o seu tempo, não se atrasando nos seus horários.

Para Guido de Dona Lia, que ninguém chama de doutor, , moço bom, amigo dos amigos, advogado que não trabalha com leis, deixo esta miniatura da Constituição para que ele veja que há pouca diferença daquela em vigor.

Ao Dr. Jumar, moço manso, risonho e já carecando, deixo o meu chapéu para ele se proteger das grandes canículas.

Para a doutora Amazile, dentista de muita valia, deixo este compêndio, obra recém-publicada, para que ela aprimore os seus conhecimentos.

Para Loló e Rosália, de alcunha Casal Vinte, moços de muitas prendas, para que mais aperfeiçoem o seu já modesto consultório, deixo esse alicate, peça moderníssima de moldar coroa, e essa miniatura de dentadura para lhe servir de modelo.

A Jaime Dantas, moço que não gosta de gaita, deixo a minha broaca, embora sem nenhum recheio.

Para Zezé Araújo, moço novo, bem aquinhoado, político, amigo dos necessitados, deixo o meu peso de estimação para que ele possa aferir os seus, e essa trena para ele medir seus passos nos caminhos tortuosos da política.

Ao meu amigo e parente Cândido, deixo um dos meus canecos para que ele possa tomar a sua cerveja com mais gosto. E como ele está ingressando no ramo do leite, o meu funil que tantos anos usei coando leite.

Para Mário Neto, esse guri irrequieto, deixo essa chavinha para que, com ela, possa trancar o armário dos seus badaluques.

A Rafael, jovem forte caladão e curioso. deixo essa casa miniatura que, com suas aptidões, venha a montá-la.

Para as bonecas da festança, Natália e Lorena, porque não têm com que brincar, deixo as minhas calungas de estimação.

Para Chico Gomes e Netinha, meus descendentes de primeira geração, deixo com muito apreço o meu outro cachimbo e uma tigela de barro para que possam, com esses tesouros, aproveitar o que a vida tem para dar.
Para o Dr. Zé Eymard, pessoa de primeira grandeza, um homem sem falha, deixo a minha escultura cinzelada nos tempos em que andava palmilhando por esse mundão afora.

Às minhas queridas netas Carmem, Pretinha, Lígia, Lúcia, Luíza, Iza, Conceição, Teca, Maria do Carmo e Neném, que estão aí com cara de triste achando que não foram enxergardas, deixo para cada uma delas uma escolha a sua prenda. Peço, porém, que não vão aos muxições, com brigas na hora da escolha.

A Clodomiro caçador de muita fama e valia, deixo o meu polvarino e cartucheira, e que faça bom proveito.

Para Maria, a minha panela, para que ela possa cozinhar os quitutes de Dona Alziva.

A Amaury, moço apaixonado pelo futebol, deixo essa bola semelhante à Copa da França.

Para Chico Jacinto, moço bom trabalhador, que sempre atende nas horas certas, deixo a minha capa impermeável para que jamais fique na chuva, e esse belíssimo baralho com qual sempre ganhei todas as paradas.

Para toda mocidade linda aqui presente, deixo esse mundo bonito e cheio de promessas, para que gozem tudo dele enquanto têm punjança de vida. Que vivam e vivam muito, aproveitem cada momento, que a vida é curta e não se repete. Toda hora é hora para viver e ser feliz.

E, como pelo menos uma vez quero ser justo com todos, mando que o testamento faça um sorteio dos 30 dinheiros. E que ganhe o de mais sorte.


Judas Florêncio das Grandes Tormentas.


Mário Ferreira de Medeiros



Santa Luzia, Sítio Tapuyo; Semana Santa de 1995.